De natura deorum

(ed. M. Tullius Cicero. de Natura Deorum. O. Plasberg. Leipzig. Teubner. 1917)

 

ND 1.46:Ac de forma quidem partim natura nos admonet, partim ratio docet. Nam a natura habemus omnes omnium gentium speciem nullam aliam nisi humanam deorum; quae enim forma alia occurrit umquam aut vigilanti cuiquam aut dormienti? Sed ne omnia revocentur ad primas notiones, ratio hoc idem ipsa declarat.

ND 1.46: E quanto à forma, de fato a natureza em parte nos mostra, e em parte a razão nos ensina. Na verdade, todos nós, da totalidade dos povos, não temos, pela natureza, nenhuma outra imagem dos deuses a não ser a humana; de fato, qualquer outra forma ocorreu alguma vez a alguém acordado ou dormindo? Mas, que não se retorne tudo às noções iniciais: a própria razão assevera isso mesmo.

ND1.47:nam cum praestantissumam naturam, vel quia beata est vel quia sempiterna, convenire videatur eandem esse pulcherrimam, quae conpositio membrorum, quae conformatio liniamentorum, quae figura, quae species humana potest esse pulchrior? Vos quidem, Lucili, soletis (nam Cotta meus modo hoc, modo illud), cum artificium effingitis fabricamque divinam, quam sint omnia in hominis figura non modo ad usum, verum etiam ad venustatem apta, describere; quod si omnium animantium formam vincit hominis figura, deus autem animans est, ea figura profecto est, quae pulcherrimast omnium. Quoniamque deos beatissimos esse constat, beatus autem esse sine virtute nemo potest nec virtus sine ratione constare nec ratio usquam inesse nisi in hominis figura, hominis esse specie deos confitendum est. Nec tamen ea species corpus est, sed quasi corpus, nec habet sanguinem, sed quasi sanguinem.

ND 1..47: De fato, parece apropriado que a mais excelente natureza, seja por ser feliz ou porque é eterna, também seja belíssima; que disposição dos membros, que harmonia dos traços, que figura, que aparência pode ser mais bela que a humana? De fato, Lucílio, vós costumais descrever (pois Cotta, meu amigo, o faz ora de um modo ora de outro), quando fazeis um retrato e criais a arte divina, que tudo esteja adequado à figura do homem, não só em utilidade, mas também em elegância. Então, se a figura do homem supera a forma de todos os viventes, e deus é vivente, certamente essa figura é a mais bela de todas. E como consta que os deuses são extremamente felizes, mas ninguém pode ser feliz sem a virtude, nem a virtude existir sem a razão, nem a razão de algum modo encontrar-se a não ser na figura do homem, é preciso reconhecer que os deuses têm a aparência humana. Mas, essa aparência não é um corpo, mas quase um corpo, também não tem sangue, mas quase sangue.

ND 1.71:idem facit in natura deorum: dum individuorum corporum concretionem fugit, ne interitus et dissipatio consequatur, negat esse corpus deorum, sed tamquam corpus, nec sanguinem, sed tamquam sanguinem. Mirabile videtur quod non rideat haruspex, cum haruspicem viderit; hoc mirabilius, quam vos inter vos risum tenere possitis? "Non est corpus, sed quasi corpus": hoc intellegerem, quale esset, si in cereis fingeretur aut fictilibus figuris; in deo quid sit quasi corpus aut quid sit quasi sanguis, intellegere non possum. Ne tu quidem Vellei, sed non vis fateri.

 

ND 1.71: O mesmo coloca na natureza dos deuses: enquanto evita a concreção dos corpos individuais, para que daí não se sigam a destruição e a corrupção, nega corpo aos deuses, mas como se fosse corpo, e também sangue, mas como se fosse sangue. Parece espantoso que um harúspice não ria quando vê um harúspice; mais espantoso que isso, que possais entre vós mesmos conter o riso? “Não é um corpo, mas um quase corpo”. Isso eu compreenderia se fosse plasmado em figuras de cera ou de argila. Em deus, não posso compreender o que seja um quase corpo ou um quase sangue. Na verdade, nem tu, Veleio, mas não o queres confessar.

ND 1.75-76:illud video pugnare te, species ut quaedam sit deorum, quae nihil concreti habeat, nihil solidi, nihil expressi, nihil eminentis, sitque pura, levis, perlucida. Dicemus igitur idem quod in Venere Coa: corpus illud non est, sed simile corporis, nec ille fusus et candore mixtus rubor sanguis est, sed quaedam sanguinis similitudo; sic in Epicureo deo non rem, sed similitudines esse rerum. Fac id, quod ne intellegi quidem potest, mihi esse persuasum; cedo mihi istorum adumbratorum deorum liniamenta atque formas.

ND 1.75-76:Tenho certeza de que você defenderia existir uma determinada aparência dos deuses, que não tenha concretude nem solidez, nenhuma fixidez e que seja pura, leve e translúcida. Podemos, então, dizer o mesmo que dizemos da Vênus de Cós: seu corpo não é um corpo, mas algo semelhante a um corpo, nem aquele rubor difuso e mesclado de brancura é sangue, mas certa semelhança com o sangue; desse modo, no deus de Epicuro não existe substância, mas semelhança com substância. Vamos assumir que eu esteja convencido disso, de algo que eu não posso entender; mostre-me os traços e as formas desses deuses de sombras

ND 1.77:primum omnium quis tam caecus in contemplandis rebus umquam fuit, ut non videret species istas hominum conlatas in deos aut consilio quodam sapientium, quo facilius animos imperitorum ad deorum cultum a vitae pravitate converterent aut superstitione, ut essent simulacra, quae venerantes deos ipsos se adire crederent. Auxerunt autem haec eadem poetae, pictores, opifices; erat enim non facile agentis aliquid et molientes deos in aliarum formarum imitatione servare. Accessit etiam ista opinio fortasse, quod homini homine pulchrius nihil videatur.

ND 1.77:Em primeiro lugar, haveria alguém tão cego que não veja que essas figuras humanas foram atribuídas aos deuses por uma deliberação dos sábios, para que os ânimos dos ignorantes abandonassem as práticas viciosas e supersticiosas pelo culto dos deuses, provendo estátuas e, venerando-as, acreditassem ter acesso aos próprios deuses? Essas imagens foram ampliadas por poetas, pintores e artífices, que tiveram dificuldade em representar deuses ativos e eficazes em outra forma que não a humana. Talvez a crença humana de que nada é mais belo que o homem tenha contribuído para isso.

ND 1.80: redeo ad deos. Ecquos si non tam strabones at paetulos esse arbitramur, ecquos naevum habere, ecquos silos, flaccos, frontones, capitones, quae sunt in nobis, an omnia emendata in illis? Detur id vobis; num etiam una est omnium facies? Nam si plures, aliam esse alia pulchriorem necesse est, igitur aliquis non pulcherrimus deus; si una omnium facies est, florere in caelo Academiam necesse est: si enim nihil inter deum et deum differt, nulla est apud deos cognitio, nulla perceptio.

 

ND 1.80: Retorno aos deuses. Se considerarmos que há alguns que são tão vesgos ou ligeiramente estrábicos, que alguns têm verrugas, outros nariz chato, orelhas compridas, testas largas, cabeças grandes, que existem em nós, porventura é tudo corrigido neles? Isso vos seja concedido. Porventura, existe uma única face para todos? Pois se há muitas, é necessário que uma seja mais bela que a outra; portanto, não será alguém o deus mais belo. Caso haja uma só face para todos, é necessário que a Academia floresça no céu; se de fato não há nenhuma diferença entre um deus e outro, junto aos deuses não existem nenhum conhecimento e nenhuma percepção.

ND 1.81: quid si etiam, Vellei, falsum illud omnino est, nullam aliam nobis de deo cogitantibus speciem nisi hominis occurrere? Tamenne ista tam absurda defendes? Nobis fortasse sic occurrit ut dicis: a parvis enim Iovem Iunonem Minervam Neptunum Vulcanum Apollinem reliquos deos ea facie novimus qua pictores fictoresque voluerunt, neque solum facie sed etiam ornatum aetate vestitu. At non Aegyptii nec Syri nec fere cuncta barbaria.

ND 1.81: Além disso, Veleio, tu não percebes que a declaração de que, quando pensamos em deus, a única forma que se apresenta a nós é a humana, é totalmente falsa? Você continuará mesmo assim a manter seus absurdos? É plausível que nós imaginemos deus como você diz, porque desde nossa infância Júpiter, Juno, Minerva, Netuno, Vulcano e Apolo nos são conhecidos com o aspecto que os pintores e escultores quiseram, e não apenas o aspecto, mas os ornamentos, a idade e o vestuário. Mas, eles não são assim conhecidos pelos egípcios ou pelos sírios, ou por quase todos os bárbaros.

ND 1.82-83:(...)quid igitur censes Apim illum sanctum Aegyptiorum bovem nonne deum videri Aegyptiis? Tam, hercle, quam tibi illam vestram Sospitam. Quam tu numquam ne in somnis quidem vides nisi cum pelle caprina, cum hasta, cum scutulo, cum calceolis repandis. At non est talis Argia nec Romana Iuno. Ergo alia species Iunonis Argivis, alia Lanuinis. Et quidem alia nobis Capitolini, alia Afris Hammonis Iovis. Non pudet igitur physicum, id est speculatorem venatoremque naturae, ab animis consuetudine inbutis petere testimonium veritatis? Isto enim modo dicere licebit Iovem semper barbatum, Apollinem semper inberbem, caesios oculos Minervae, caeruleos esse Neptuni. Et quidem laudamus esse Athenis Volcanum eum, quem fecit Alcamenes, in quo stante atque vestito leviter apparet claudicatio non deformis: Claudum igitur habebimus deum, quoniam de Volcano sic accepimus. Age et his vocabulis esse deos facimus, quibus a nobis nominantur?

ND 1.82-83: (...) Por que então pensas que Ápis, o sagrado boi dos egípcios, não era considerado um deus pelos egípcios? Tanto quanto para ti, por Hércules, é vossa Juno Sóspita. Tu nunca a vês a não ser com a pele de cabra, com a lança, com o pequeno escudo e com os sapatinhos recurvados. Mas não é assim, porém, a Juno de Argos nem a de Roma. Portanto, uma é a aparência de Juno para os argivos e outra para os lavínios. E realmente uma é para nós a aparência de Júpiter Capitolino e outra a de Júpiter Hammon para os africanos.Assim, não cabe ao físico, isto é, ao cultor e investigador da natureza, buscar o testemunho da verdade entre os espíritos impregnados de tradição? Desse modo, será lícito dizer que Júpiter é sempre barbudo e Apolo sempre imberbe, que os olhos de Minerva são verdes e azuis os de Netuno. E até elogiamos que exista em Atenas aquele Vulcano, feito por Alcamenes, no qual, estando em pé e levemente vestido, aparece uma claudicação não deformante: temos, portanto, um deus manco, uma vez que assim fomos informados a respeito de Vulcano. E fazemos com essas palavras que existam deuses, com as quais são denominados por nós?

ND 1. 100-101: (...) ‘habemus’, inquis ‘in animo insitam informationem quandam dei’. Et barbati quidem Iovis, galeatae Minervae: num igitur esse talis putas? Quanto melius haec vulgos imperitorum, qui non membra solum hominis deo tribuant sed usum etiam membrorum. Dant enim arcum sagittas hastam clipeum fuscinam fulmen, et si actiones quae sint deorum non vident, nihil agentem tamen deum non queunt cogitare. Ipsi qui inridentur Aegyptii nullam beluam nisi ob aliquam utilitatem quam ex ea caperent consecraverunt;

(...) Ita concludam, tamen beluas a barbaris propter beneficium nullum exstare sed ne factum quidem omino.

 

“Nós”, tu dizes, “temos uma ideia dos deuses implantada em nossas mentes”. Sim, uma ideia de Júpiter barbado e Minerva com um elmo; mas, acreditasrealmente que eles sejam assim? A multidão inculta é certamente mais sábia neste ponto, pois não apenas atribui membros humanos aos deuses, mas também o uso desses membros. Aos deuses deram arcos, flechas, escudos, tridentes, raios; e se não podem ver que ações os deuses realizam, não cogitam deuses inativos. Mesmo os egípcios, de quem rimos, divinizam animais somente em vista de alguma utilidade que deles derivam (...). Concluo assim: esses animais são todos divinizados pelos bárbaros por causa dos benefícios que oferecem, mas seus deuses não servem para nada, nem fazem coisa alguma.

ND 2.45: restat ut qualis eorum natura sit consideremus; in quo nihil est difficilius quam a consuetudine oculorum aciem mentis abducere ea difficultas induxit et vulgo imperitos et similes philosophos imperitorum, ut nisi figuris hominum constitutis nihil possent de dis inmortalibus cogitare; (...)

 

ND 2.45: Cabe a nós considerar as qualidades da natureza divina, e sobre esse assunto nada é mais difícil que impedir que os olhos da mente sucumbam ao hábito da visão. Essa dificuldade impediu que o povo ignorante e os filósofos, que parecem incultos e ineptos, concebessem os deuses imortais sem apelar para as formas humanas.

ND 2.70: videtisne igitur ut a physicis rebus bene atque utiliter inventis tracta ratio sit ad commenticios et fictos deos. Quae res genuit falsas opiniones erroresque turbulentos et superstitiones paene aniles. et formae enim nobis deorum et aetates et vestitus ornatusque noti sunt, genera praeterea coniugia cognationes, omniaque traducta ad similitudinem inbecillitatis humanae. (...) haec et dicuntur et creduntur stultissime et plena sunt futtilitatis summaeque levitatis.

ND 2.70: Percebes como, de uma física verdadeira e boa, se passou a esses deuses imaginários e esculpidos? A perversão derivou em falsas crenças, erros loucos e superstições que dificilmente são melhores que os contos das velhas. Sabemos como os deuses se parecem, quantos anos eles têm, suas vestimentas e equipamentos, e também sua linhagem, casamentos e relacionamentos, e tudo sobre eles é distorcido pela semelhança com a imbecilidade humana. (...) Essas histórias e crenças são totalmente fúteis; elas estão plenas de estultícia e de absurdos de todo tipo.

ND 3.21: ... nullo modo prorsus adsentior, non quod difficile sit mentem ab oculis sevocare, sed quo magis sevoco eo minus id quod tu vis possum mente comprendere

ND 3.21: (...) absolutamente não concordo, não porque seja difícil afastar a mente dos olhos, mas porque quanto mais a afasto, tanto menos posso compreender pela mente o que queres.